Encontrar Clarice Freire é sempre muito bom – e eu não sou a única a achar isso. No último final de semana, a pernambucana participou da 24ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo e, como sempre, causou um verdadeiro frisson nas fãs presentes. Foi choro pra cá, sorrisos e gritinhos pra lá, autógrafos e muitos abraços. O melhor de tudo é que, depois que você se encontra com ela, você tem a sensação de que a vida é linda e tudo é possível. É um remédio pra alma! No estande da Intrínseca, a escritora fez questão de atender todo mundo e se emocionou com a quantidade de pessoas que vieram de outros estados só para terem um momentinho com ela. “Cheguei! São Paulo é uma cidade muito especial para mim, eu amo aqui”, ela disparou logo que me viu. É a fofura em pessoa, gente! 

Recentemente, Clarice lançou Pó de Lua nas Noites Em Claro, seu segundo livro, que apresenta algumas diferenças em relação ao seu antecessor, Pó de Lua (2014). A primeira delas – e a mais significativa – foi o uso de prosa. Desta vez, a escritora criou uma narrativa que divide os capítulos em horas, que vão da meia-noite ao amanhecer. Ou seja, a madrugada é o pano de fundo da nova aventura da pernambucana. Para falar um pouquinho mais sobre a obra, ela me atendeu no último domingo (28) – e a conversa vocês podem conferir a seguir: 

Como foi a concepção de Pó de Lua nas Noites Em Claro?
Foi interessante. No meu primeiro livro [Pó de Lua], eu já tinha muito material guardado que acabei reaproveitando, mas também criei muitas coisas do zero para poder ficar metade/metade. Em Pó de Lua nas Noites Em Claro isso não aconteceu. Foi um novo trabalho, e a partir de uma temática diferente, a madrugada. Lembro que a ideia surgiu através de algumas pessoas do meu convívio, que chegaram para mim perguntando “será que existe poesia nessa tua insonia?”, e eu parei para pensar nisso, sabe? Foi aí que tudo começou. 

Então você é insone? 
Sou sim. E é exatamente por isso que eu mergulhei fundo e com tanto conforto nessa temática da madrugada. É um assunto que entendo muito bem, então pude entendê-lo e explorá-lo melhor. Acho que é por isso que o resultado ficou tão bom [risos]. 

Nesse novo livro, você chegou a reaproveitar algum material que você tinha guardado, ou publicado nas redes sociais? 
Como a temática é diferente, eu fiz tudo do zero. É claro que acabei revisitando algumas coisas que já tinha feito ou postado nas redes sociais… por exemplo, a história do adulto no viaduto foi feita a partir de uma poesia que eu já tinha em casa. Vi que ali tinha um potencial e acabei criando toda uma história para ela. 

Eu acho Pó de Lua nas Noites Em Claro tão diferente de Pó de Lua… em tantos aspectos! 
É verdade. Acontece que ao mesmo tempo em que eu queria fazer algo com a minha cara, eu queria fazer algo novo, então acabei ousando muito mais. Inseri a prosa nesse novo livro, o que foi um desafio para mim. No começo, fiquei me perguntando como eu iria misturar a prosa com a minha poesia visual, toda desenhada, de uma forma que não ficasse confuso, sabe? Isso foi um trabalho muito meticuloso. Horas e horas de trabalho com o editorial para que tudo fizesse sentido. 

Para fazer esse trabalho, você passou a ler algum autor específico ou fez algum tipo de pesquisa?
Durante todo o processo de escrita do livro eu tinha duas obras bem pertinho de mim. Uma delas era Toda Poesia, do Paulo Leminski, e a outra era Viagem, da Cecília Meireles. São dois trabalhos tão diferentes, mas que quis manter perto e revisitar. Eu quis abraçar o humor, a irreverência e as brincadeiras com palavras do Paulo e a profundidade, a densidade e o mergulho no subjetivo da Cecília. 

Falando em prosa… como foi para você trabalhar com algo tão novo, considerando tudo o que você já tinha feito anteriormente? 
Eu achei tão legal! Claro que foi um desafio, mas quando você analisa o resultado final, você percebe o quanto a prosa completou a minha poesia. Qualquer poesia do livro funciona individualmente, mas, se você ler ela juntamente com as prosas, o sentido dela mudará completamente. Essa foi a melhor parte: fazer com que as poesias pudessem ser independentes, mas que também fizessem parte de um universo maior, de uma veia narrativa. E isso fica bem explicito em alguns momentos, sabe? Por exemplo, o livro começa com uma prosa, que vai se destrinchando em poesias que complementam a prosa inicial. 

Em Pó de Lua você trabalhou muito com a poesia desenhada. Agora, você está trabalhando muito mais com a ilustração… como aconteceu essa mudança? 
Eu passei a entender que uma imagem pode dizer muitas coisas. Então, comecei a dar um valor maior ao meu traço, mais do que dei na minha vida inteira. Nesse novo livro eu quis gastar, perder tempo com a ilustração. O que aconteceu é que em vários momentos eu fazia um desenho, e, ao olhá-lo, ele me passava mais alguma coisa – e era dali que saia o texto. Em outros momentos a ilustração simplesmente passava tudo o que eu queria dizer. Há uma ilustração, inclusive, que expressa bem isso. É uma árvore seca, que dela está brotando um pouquinho de amor. Eu chamo ela de retrato falado, porque pra mim ela tem começo meio e fim. Lembro que, quando eu a desenhei, eu me identifiquei muito porque ela passava tudo o que eu estava sentido naquele momento. 

Me fala um pouquinho sobre o seu processo de criação. Você se considera uma pessoa organizada?
Então… eu sou muito organizada! [Risos] Mentira! Expectativa: meu escritório todo arrumadinho. Realidade: Ele fica sempre bem bagunçado [risos]. Mas isso tem uma coisa boa, sabe? Eu sou muito boa em guardar coisas. Como fica tudo bagunçado, às vezes acho algo que não via a muito tempo… e essas coisas acabam te surpreendendo, é bacana. 

E você gosta dessa bagunça toda? 
Olha, eu não sou organizada, mas estou me forçando muito para ser [risos]. Passei a fazer checklist, comprei algumas pastas de organização, sempre arrumo a minha estante… eu vi que, se não for assim, não vou dar conta de algumas coisas. As coisas tomaram uma proporção maior com o segundo livro, então eu preciso disso. Eu também sou assim! Eu perco tudo… Quando a gente é assim, não dá para ser tão organizada, né? [Risos] Eu tenho um limite. É uma questão biológica, sei que nasci assim e sou assim. Essa bagunça é importante para me deixar livre para criar. Acho que, se eu fosse metódica, eu não criaria do jeito que crio hoje. 

Você cria em que horário? Durante a madrugada?
Sim! Eu começo a escrever a partir da meia-noite – por isso o livro é dividido em horários e começa à meia noite. É uma coisa muito livre… deito na cama, blusão, cabelo desarrumado, é um momento tão íntimo comigo mesmo, porque não preciso ser nada para ninguém, ninguém está me vendo. Esse horário é bom porque ninguém fala comigo, ninguém me manda whatsapp, sei que ninguém vai me incomodar. É um momento de muita paz, porque eu posso escutar tudo o que está dentro de mim, coisas que durante o dia eu não consigo ouvir. 

E como é o restante da sua rotina? 
Quando preciso acordar cedo, eu escrevo até umas duas da manhã. Quando não, fico acordada até umas quatro, acordo umas onze e começo a responder meus e-mails da editora e dos meus projetos sociais. Faço tudo isso até umas três da tarde, porque quando dá umas três e meia eu começo a desenhar o que escrevi na noite anterior – já que, na madrugada, eu só coloco as ideias no papel. 

O que mudou desde a nossa conversa na Bienal de 2014? E, principalmente, o que Pó de Lua nas Noites Em Claro tem diferente de Pó de Lua? 
Nos dois livros eu tentei não perder a minha identidade. Você sabe, eu tenho uma identidade visual que mistura minha caligrafia e meu traço com poesia desenhada, nanquim, pastel seco e algumas riscas de aquarela… tudo isso evoluiu com o tempo, claro, mas tentei não perder nada durante esse processo. Por conta disso, acho que qualquer pessoa que me conhece consegue me reconhecer nos meus livros. O que mudou… bom, a minha visão do mundo não mudou, mas a minha experiência com o mundo sim. Isso está bem presente no segundo livro, sabe? É nítida a minha relação com a noite, porque eu passei por muitas madrugadas desde então, “noite da alma” como gosto de chamar. E a minha poesia é isso, eu gosto de ver beleza no que está escuro, no que é feio, no que é sujo, no que é dolorido. Nesse tempo descobri que, pra diminuir a gravidade das coisas, vou usar sempre da delicadeza pra falar das coisas duras e leves da vida.

Entrevista publicada no site DAMMIT - MTV.